Fate of Umdaar: Fundação, um modelo de sessão zero
Na postagem Fate of Umdaar: primeiras impressões sobre o playtest, apresentei uma visão geral sobre o Fate of Umdaar, que no momento da escrita deste texto encontra-se em playtest. Sinto, porém, que uma visão geral não esgotou tudo que há para ser dito sobre o jogo, então decidi escrever mais algumas coisas sobre os pontos específicos que mais me chamaram a atenção no Fate of Umdaar.
Para quem me conhece do podcast Fate Masters, sabe que uma das minhas bandeiras favoritas é a defesa e a realização da sessão zero. Resumidamente, a sessão zero é o momento em que o grupo de jogadores senta para discutir e combinar questões pertinentes ao jogo, desde a regulação das relações interpessoais entre eles (o famoso contrato social) até a criação conjunta de elementos de cenário. Isso ajuda a reduzir ruídos entre os jogadores, dá diretrizes sobre como lidar com situações desconfortáveis, e garante que todos estejam na mesma página com relação às expectativas para o jogo.
Em Fate of Umdaar, a sessão zero é chamada de Fundação1, e ela é considerada um passo essencial. Nas palavras do autor:
Any game of Fate of Umdaar starts the same way: by laying out the Foundation.
[Tradução livre] Todo jogo de Fate of Umdaar começa da mesma maneira: estabelecendo a Fundação.
Como toda sessão zero, a Fundação em Fate of Umdaar visa estabelecer elementos de segurança para os jogadores, regras de convívio social e criar conjuntamente o jogo com o qual todos pretendem se divertir por algumas sessões de jogo. O Fate of Umdaar apresenta a Fundação bem estruturada, com cada conjunto de discussões pertinentes divididas em fases, e falarei um pouco sobre cada uma delas a seguir.
Fase 1: Limites
Nesta fase são estabelecidos os limites, tanto entre os jogadores, como para o mundo de jogo. Esses limites são agrupados em ferramentas de segurança, temas e tons, ajustes e aspectos de mundo.
Ferramentas de segurança
Ferramentas de segurança são recursos que visam garantir que todos na mesa sintam-se seguros e confortáveis, tanto uns com os outros, quanto com o jogo que estão jogando. São elas que permitem a um jogador estabelecer quais temas são desconfortáveis ou mesmo traumáticos para ele e, portanto, não devem ser abordados em jogo, e são essas mesmas ferramentas que permitem ao jogador expor-se sem temer ridicularização ou outras formas de julgamento. É claro, como é impossível compilar uma lista com todos os problemas que poderão surgir, as ferramentas também preveem meios para lidar com questões inesperadas que surjam ao longo do jogo.
O Fate of Umdaar apresenta quatro ferramentas de segurança famosas e já estabelecidas entre os adeptos do jogo seguro: a X-Card, de John Stavropoulos e disponível em http://tinyurl.com/x-card-rpg; o Script Change RPG Toolbox, de Brie Beau Sheldon e disponível em http://tinyurl.com/nphed7m; os Limites e Véus, discutidos em https://rpg.stackexchange.com/questions/30906/what-do-the-terms-lines-and-veils-mean; e a Verificação de Temperatura, explicada com mais detalhes no Fate of Umdaar, mas que pode ser resumido como uma conversa regular e franca entre os envolvidos sobre se as coisas estão confortáveis para todos.
Temas e tons
O grupo deve discutir quais serão os temas e tons adotados para suas sessões de jogo. Alguns grupos vão preferir algo mais adulto, outros vão preferir um ritmo mais desenho animado dos anos 80. Desde que todos estejam na mesma página, tudo está certo e nada está errado.
Ajustes
Fate of Umdaar permite uma série de ajustes próprios, além daqueles que podem ser feitos diretamente no sistema de regras. Para quem não é exatamente familiar com o conceito, ajustes são regulagens feitas nas regras, seja por alteração, inclusão ou exclusão, que permitem adequar o jogo aos gostos do grupo de jogadores. Em alguns casos, podem ser a adoção de regras opcionais ao jogo que, por terem ampla repercussão no sistema como um todo, demandam consenso de mesa.
Aspectos de mundo
Em Aspectos do mundo, discute-se não apenas os aspectos do mundo propostos pelo Fate of Umdaar para o jogo, como os jogadores são estimulados a pensar em quais aspectos de mundo eles gostariam de criar e usar. Uma discussão especialmente importante para reforçar uma visão descolonizada entre os participantes.
Fase 2: Estrutura
A Estrutura do jogo diz respeito ao modelo das sessões. As escolhas aqui são Independente2, a famosa one-shot; ou Serializada3, com vários arcos narrativos de alguma forma interligados entre si. No caso de criação de um jogo serializado, apresenta-se também algumas discussões úteis na hora de elaborar a estrutura geral da série.
Fase 3: Foco
Como discutido no artigo anterior sobre o playtest de Fate of Umdaar, existem três focos possíveis: Dignatários, Rebeldes e Arqueonautas. Apesar de não ser obrigatório adotar um foco, seja por misturar elementos dos três, seja por querer explorar algo menos formulaico, adotar um ajuda muito a manter o foco do planejamento do jogo, e por isso é altamente recomendado fazer uma escolha aqui.
Dignatários são os diplomatas, emissários, nobres e cavaleiros que pretendem unir e proteger as Freelands. Trata-se de um jogo mais voltado para personagens sociais e para jogadores que gostam de jogos mais focados nas interações entre os personagens e menos focados nas interações entre as armas deles.
Rebeldes são insurgentes que vivem nos Dread Domains e estão dispostos a fazer o necessário para derrubar os Mestres e libertar a região de dentro para fora. É um foco mais centrado em combates, e ao o escolher o grupo dá essa direção geral ao jogo como um todo.
Arqueonautas são exploradores, aventureiros que cruzam os Wildernexues para encontrar, catalogar e restaurar ruínas ou artefatos do Demiurgo, e ocasionalmente estabelecer os primeiros contatos com as comunidades isoladas encontradas nesses locais. Este foco é mais recomendado para grupos cujo maior prazer é explorar e desvendar os mistérios do mundo ao redor deles, e não raramente os jogadores terão grande impacto na criação do cenário como um todo.
Fase 4: Locais
Nesta fase, serão criados os locais que serão importantes para a narrativa. Isso não apenas dá aos jogadores a chance para moldarem o mundo de Fate of Umdaar de acordo com seus gostos, como cria as comunidades com as quais os personagens possuirão alguma ligação. Com isso, os personagens evitam em duas frentes o arquétipo do Grande Salvador Branco, pois eles deixam de ser retratados tanto como forasteiros sábios que vieram civilizar os locais, quanto como assassinos e saqueadores errantes cujo único propósito na vida é matar, pilhar, destruir e votar no Bolsonaro.
Narrativas independentes vão precisar de menos locais do que narrativas serializadas, mas ainda assim é bom que existam pelo menos uma comunidade relacionada ao problema. Um bom exemplo disso vem de, acreditem se quiser, Indiana Jones e o Templo da Perdição, onde, embora ele ainda seja um Grande Salvador Branco, Indy cai de para-quedas (quase que literalmente) em uma comunidade local, que pede para ele resgatar um artefato importantíssimo que foi roubado por Mola Ram e seus seguidores de Kali Ma. No filme temos o Tibet (onde ele conhece a Indy Lady do dia), a comunidade que teve seu artefato roubado, o palácio do Marajá (com a icônica cena de degustação de cérebros de macacos), a mina e o templo de Mola Ram. Depois de um bom banho para limpar os arquétipos e estereótipos colonialistas, esse filme bem serve como modelo para uma narrativa independente focada em arqueonautas!
Narrativas serializadas, entretanto, demandam mais trabalho. Afinal de contas, a história será mais longa, e não seria muito interessante manter tudo acontecendo em um só lugar. Além disso, narrativas serializadas permitem (eu diria pedem) maior exploração do mundo ao redor do personagem, e não só da comunidade ao redor deles. Assim, pode ser interessante criar mais de uma comunidade, e o Fate of Umdaar dá orientações sobre como criar comunidades de diversos tipos (Freelands, Dread Domains e Wildernexuses), bem como definir quais as interações entre essas comunidades, e extrapola isso para como criar continentes inteiros! Para fãs de jogos estilo West Marches, isso é um prato cheio.
Ainda sobre as comunidades, o Fate of Umdaar traz várias discussões sobre como criá-las, bem como quais arquétipos e estereótipos evitar. Em especial, há uma discussão sobre quais bioformas4 adicionar a uma cidade, e porque certos arquétipos, como a cidade de uma raça só, não funcionam bem em um jogo descolonizado. As regras de criação de comunidades ainda prevêem como os Valores de uma comunidade, conceitos abstratos mas tidos como importantes por ela, como honra, sabedoria, justiça, a afetam dentro do mundo de jogo. Os Valores são apresentados em pares dualistas, mas sendo complementares e não necessariamente excludentes entre si.
Fase 5: Questões
Questões são um termo bonito para se referir aos aspectos de campanha, tal como se pensa este conceito desde o Fate Básico. Só que ao invés de uma questão iminente e uma questão presente, em Fate of Umdaar se pensa em um aspecto de aventura e uma questão de série, para as narrativas serializadas, ou dois aspectos de aventura, para as narrativas independentes.
Para as narrativas serializadas, a questão de série é um aspecto que descreve uma questão importante que estará presente ao longo da série. Normalmente relacionada ao foco da narrativa, a questão de série é um problema imenso e difícil de consertar (isto é, se for possível consertá-lo, para começo de conversa). Ao lado da questão de série, o Fate of Umdaar sugere adotar um aspecto para descrever a questão iminente, o que acontecerá ao mundo caso os inimigos consigam atingir seus objetivos ou o que acontece caso um fator previamente desconhecido seja revelado.
Já o aspecto de aventura funciona como a questão presente. Trata-se de um aspecto que descreve um problema que está acontecendo aqui e agora, e que pode ser corrigido pelos personagens mediante algum esforço e empenho. Resolver o aspecto de aventura marca o fim de uma narrativa independente, mas pode ser apenas um dos arcos de uma narrativa serializada.
Fase 6: Vilões
Hora de criar os vilões da narrativa. Obviamente, é um péssimo negócio imaginar um inimigo que seja uma pulga alienígena vinda do espaço, sem razão ou motivo para estar ali além de ser um vilão. Entre as que eu conheço, apenas uma narrativa com uma pulga alienígena funciona – Chrono Trigger –, e mesmo assim apenas porque a referida pulga – Lavos – tem razão para estar ali na história.
Para evitar isso, o Fate of Umdaar traz algumas discussões sobre como criar os vilões da narrativa. Normalmente, eles serão os Mestres de Umdaar, mas em dados contextos, outras escolhas podem servir muito bem, como desastres naturais ou mesmo líderes de Freelands discordando sobre algum tema político. É uma boa prática, também, vincular as Questões criadas na fase anterior aos vilões a serem criados nesta – nem que seja apenas para evitar a pulga alienígena vinda do espaço.
Fase 7: Campeões
A última etapa da Fundação é a criação dos personagens dos jogadores, que em Fate of Umdaar são chamados de campeões. Trata-se de um bom momento não apenas para preencher as fichas de personagem, mas para discutir como o grupo de personagens funciona, com o que eles costumam lidar, qual é a história pregressa deles como grupo, essas coisas. Entretanto, pretendo, se o tempo deixar, criar um artigo específico sobre a criação de personagens em Fate of Umdaar, de modo que não vou me demorar muito neste tópico.
Considerações finais
Assim funciona a Fundação em Fate of Umdaar. Nota-se, mesmo ao se ler apenas uma apresentação superficial como esta, que a Fundação é um modelo robusto de sessão zero, um que pode ser adotado em diversos jogos, diversos sistemas, com um mínimo de adaptações. Espero que isso inspire mais jogadores ainda a tratar a sessão zero com o devido respeito e importância que ela tem.
E esta é minha deixa. Espero que após esta leitura vocês estejam melhor preparados para, de um modo seguro para todos, derrubar… OS MESTRES DE UMDAAR!
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Tradução livre do termo Fundação. Não relacionado à série de contos e aos romances de Isaac Asimov. ↩
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Tradução livre do termo standalone. ↩
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Tradução livre do termo long form. ↩
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Tradução livre para o termo bioform. Fate of Umdaar evita o termo raça (race) por várias razões, mas para uma discussão mais ampla do tema, recomendo ler tanto o Masters of Umdaar quanto o próprio Fate of Umdaar. ↩